segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Algemirando (1): sobre muros e livros

(caio silveira ramos)
Para Dona Janda

Inicia-se aqui uma série de pequenas histórias sobre o Professor Algemiro Coelho Ramos.   Além das minhas próprias lembranças, as memórias de alunos, amigos e demais familiares também ajudarão a tecer outros relatos sobre esse homem simples e fundamental. 
O termo “Algemirando” remete a vários títulos de um dos gêneros musicais preferidos de seu Miro (o que já revela muito sobre ele): o Choro. Só para lembrar alguns clássicos, temos “Murmurando”, “Cochichando”, “Escorregando”, “Chorando baixinho”, “Vou vivendo”... Por que não, Algemirando?
A palavra também me lembra de uma história ocorrida há alguns anos: M. Dupont White, senhor dos mil gatos, exclamou ao me encontrar no Centro de São Paulo: “rapaz, você está se algemirrrando”.  Dupont White passava horas conversando com meu pai sobre política, geografia e literatura, e ficou surpreso ao notar como eu, que sempre me assemelhara ao lado materno da família, com o passar dos anos tinha me tornado tão parecido com seu Miro. 
“Algemirando” pretende dar a ideia de algo que está em curso, algo que está presente em nós e influencia nosso dia a dia.
 E modifica nossa vida. 
***
Quando o chamado “Muro da Vergonha” foi derrubado na Alemanha, no final de 1989, uma cena em particular me chamou a atenção: com livros nas mãos, dezenas e dezenas de moradores de Berlim Oriental correram pelas ruas a caminho da Biblioteca da parte Ocidental da cidade para devolver as obras emprestadas havia quase três décadas.  Finalmente aquelas pessoas podiam cumprir um dever que as inquietava desde a construção relâmpago daquele Muro que cerceava encontros entre amigos e parentes, e até a simples liberdade de devolver um livro à Biblioteca.  Alguns ali corriam com uma responsabilidade ainda maior: levavam nas mãos o compromisso de avós, pais, esposas e maridos falecidos, que, durante a vida ou antes da morte, fizeram seus parentes prometerem a devolução dos livros no dia em que caísse o Muro. E pela TV, eu pude ver a alegria daqueles alemães, que finalmente podiam cumprir suas promessas, enquanto voavam pela cidade unida.
Anos antes da queda do Muro, meu pai fez algo semelhante: visitando um antigo sebo piracicabano, deparou-se com um livro que o interessou muito.  Porém, quando folheou a obra, encontrou, pregado na contracapa, um pequeno envelope com uma ficha de empréstimo.  Surpreso, verificou, no restante do livro, os carimbos da biblioteca – não me lembro se do Departamento de História ou do de Letras –, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus de Assis.  Indignado com aquela situação e com o autor desconhecido daquele verdadeiro crime contra o patrimônio público (e principalmente contra a busca pelo conhecimento por parte de um aluno ou professor), ele não teve dúvidas: comprou o livro, redigiu uma pequena carta e enviou tudo pelo correio, ainda naquele dia, para o respectivo Departamento.  Ele até recebeu uma singela resposta de agradecimento, mas não estava preocupado com isso.
Tenho certeza que se morasse na Alemanha Oriental naquele fim de 1989, ele seria um daqueles que correria feliz pelas ruas para devolver finalmente um livro emprestado, mas que não fora restituído à Biblioteca durante três décadas por causa do Muro de Berlim.    Não, talvez não.  Destemido como era, talvez ele não tivesse esperado a queda do Muro: antes disso, ainda que acreditasse em um mundo mais justo e menos desigual – e, portanto, cresse nos mesmos sonhos de muitos daqueles que fizeram tantas revoluções na Europa do século XX –, ele teria enfrentado, com o livro debaixo do braço, o cimento, o aço, os guardas, as balas e até a morte.
E em paz com sua consciência, vivo ou morto, ele daria mais uma vez a prova de sua fé inabalável no ser humano e na necessidade de espalhar sua sede de conhecimento ao mundo todo. 

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 25/1/2013

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