(caio silveira ramos)
Para Dona Janda
Inicia-se aqui uma série de pequenas histórias sobre o Professor
Algemiro Coelho Ramos. Além das minhas próprias lembranças, as
memórias de alunos, amigos e demais familiares também ajudarão a tecer outros
relatos sobre esse homem simples e fundamental.
O termo “Algemirando” remete a vários títulos de um dos gêneros musicais
preferidos de seu Miro (o que já revela muito sobre ele): o Choro. Só para
lembrar alguns clássicos, temos “Murmurando”, “Cochichando”, “Escorregando”,
“Chorando baixinho”, “Vou vivendo”... Por que não, Algemirando?
A palavra também me lembra de uma história ocorrida há alguns anos: M.
Dupont White, senhor dos mil gatos, exclamou ao me encontrar no Centro de São
Paulo: “rapaz, você está se algemirrrando”. Dupont White passava horas
conversando com meu pai sobre política, geografia e literatura, e ficou surpreso
ao notar como eu, que sempre me assemelhara ao lado materno da família, com o
passar dos anos tinha me tornado tão parecido com seu Miro.
“Algemirando” pretende dar a ideia de algo que está em curso, algo que
está presente em nós e influencia nosso dia a dia.
E modifica nossa vida.
***
Quando o chamado “Muro da Vergonha” foi derrubado na Alemanha, no final
de 1989, uma cena em particular me chamou a atenção: com livros nas mãos,
dezenas e dezenas de moradores de Berlim Oriental correram pelas ruas a caminho
da Biblioteca da parte Ocidental da cidade para devolver as obras emprestadas
havia quase três décadas. Finalmente aquelas pessoas podiam cumprir um
dever que as inquietava desde a construção relâmpago daquele Muro que cerceava
encontros entre amigos e parentes, e até a simples liberdade de devolver um
livro à Biblioteca. Alguns ali corriam com uma responsabilidade ainda
maior: levavam nas mãos o compromisso de avós, pais, esposas e maridos
falecidos, que, durante a vida ou antes da morte, fizeram seus parentes
prometerem a devolução dos livros no dia em que caísse o Muro. E pela TV, eu
pude ver a alegria daqueles alemães, que finalmente podiam cumprir suas promessas,
enquanto voavam pela cidade unida.
Anos antes da queda do Muro, meu pai fez algo semelhante: visitando um
antigo sebo piracicabano, deparou-se com um livro que o interessou muito.
Porém, quando folheou a obra, encontrou, pregado na contracapa, um pequeno
envelope com uma ficha de empréstimo. Surpreso, verificou, no restante do
livro, os carimbos da biblioteca – não me lembro se do Departamento de História
ou do de Letras –, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
– UNESP, Campus de Assis. Indignado com aquela situação e com o autor
desconhecido daquele verdadeiro crime contra o patrimônio público (e
principalmente contra a busca pelo conhecimento por parte de um aluno ou
professor), ele não teve dúvidas: comprou o livro, redigiu uma pequena carta e
enviou tudo pelo correio, ainda naquele dia, para o respectivo Departamento.
Ele até recebeu uma singela resposta de agradecimento, mas não estava
preocupado com isso.
Tenho certeza que se morasse na Alemanha Oriental naquele fim de 1989,
ele seria um daqueles que correria feliz pelas ruas para devolver finalmente um
livro emprestado, mas que não fora restituído à Biblioteca durante três décadas
por causa do Muro de Berlim. Não, talvez não. Destemido
como era, talvez ele não tivesse esperado a queda do Muro: antes disso, ainda
que acreditasse em um mundo mais justo e menos desigual – e, portanto, cresse
nos mesmos sonhos de muitos daqueles que fizeram tantas revoluções na Europa do
século XX –, ele teria enfrentado, com o livro debaixo do braço, o cimento, o
aço, os guardas, as balas e até a morte.
E em paz
com sua consciência, vivo ou morto, ele daria mais uma vez a prova de sua fé
inabalável no ser humano e na necessidade de espalhar sua sede de conhecimento
ao mundo todo.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal
de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 25/1/2013
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