quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Os retalhos de Cristina Flor

(caio silveira ramos)

A primeira lembrança que tenho da velha Cristina Flor chega com o cabelo sempre curto e branco. E o sorriso constante e tímido. E o rosto negro de poucas rugas. E as canelas e os braços finos.  Já a segunda lembrança vem com o corpo, que devia ser magro também, mas que parecia avolumado com suas roupas, seus poucos vestidos enfiados uns sobre os outros, como se quisesse ter suas coisas, seu mundo, sempre colados em si.
A história da velha Cristina Flor também vem chegando aos pedaços, mas eles são poucos.  Os outros vagueiam pelo tempo.
Dizem que Cristina Flor, moça linda, apareceu um dia aninhando uns panos, zanzando de lá pra cá. Chamaram, olharam: no colo, o filho sem vida, ela assim também, ou quase: para sempre debruçada no seu mundo.  A moça linda Cristina Flor, diziam, perdera o marido, perdera o filho, perdera o juízo.   Mas esse só ficou para sempre vagueando em outro lugar, em outro tempo. Como os pedaços da sua história.
Vó Sebastiana, com seus cabelos de índia, muito compridos e negros, recolheu alguns pedaços da alma de Cristina Flor. E Cristina Flor, com seus pedaços, começou a trabalhar na pensão da Vó Sebastiana, lavando e passando roupa, limpando peixe, arrumando a mesa. Debruçada no seu mundo: quieta ou falando sozinha. Ou talvez conversando com seus mistérios.   Mas Cristina Flor nunca morou na pensão.
Cristina Flor tinha sua casinha na Rua do Porto.  E uma vizinha que olhava por ela. E o olhar da vizinha era feito de talco polvilhado na escada da frente da casinha de Cristina Flor: de noite, as pegadas de Cristina diziam que ela já tinha voltado para encontrar com os seus sonhos.  De manhã, muito cedo, as não pegadas diziam que tais sonhos não a tinham levado para fora durante a madrugada.  E finalmente, no horário de sempre, o talco-olhar da vizinha podia sossegar: Cristina Flor já tinha saído para trabalhar na pensão da Vó Sebastiana.
Só que o tempo passou para Vó Sebastiana, que teve que fechar a pensão e morar com a filha Zilda em São Paulo.  Então, Cristina Flor foi trabalhar na casa da outra filha de Vó Sebastiana, a Vó Jandyra.  E lá conheceu a menina Maía da Góia.
O tempo passava também para Cristina Flor, que ainda morava na sua casinha na Rua do Porto.  Lá fazia à mão seus tapetes de retalhos e seus vestidos de trabalho e festa.  Cristina Flor adorava uma festa de brincamentos ou um evento religioso.   Nas procissões, mudava o penteado e saía com trancinhas delicadas no cabelo curto.  No Dia de Finados, se enfeitava toda e punha roupa nova para apreciar as barraquinhas de flores e gostosuras em volta do Cemitério da Saudade.  Se enfeitava para ver as pessoas. E ver o “movimento”.   E ver a vida.  E quando chegava a Festa do Divino, ela parecia voltar aos tempos de moça linda e se enchia de alegria e faceirice para apreciar os barcos, as bandeiras. O rio.
Quando o rio jogava água pra fora, a casinha de Cristina Flor na Rua do Porto era inundada e ela se assustava muito.   Até o dia em que Vó Jandyra, já morando na rua Santa Cruz, foi resgatar Cristina Flor, que estava acuada em cima de uma mesa, lá na sua casinha.   E Cristina Flor foi morar também na rua Santa Cruz.  E Cristina Flor foi dormir no mesmo quarto que a menina Maía da Góia.  Para sempre olhar pela menina Maía da Góia.
Até o dia em que a menina passou a olhar por Cristina Flor.
Cristina Flor, cada vez mais debruçada no seu mundo.

***
Ninguém sabia o motivo, mas havia dias em que Cristina Flor ficava brava e danava a falar sozinha (ou sabe-se lá com que esfera de seu mundo).  Se metia na frente do tanque a lavar trapos, roupas e, se passasse desavisado, até o cachorro da casa. Vó Jandyra dizia que se naquele dia um anjo topasse com Cristina Flor, acabaria sem uma das asas.   Mas Vó Jandyra brincava só para desenhar de volta o sorriso de Cristina Flor, que seria incapaz de ferir anjos, cachorros ou qualquer matinho travesso brotando de uma rachadura na parede.
E o tempo foi se embolando no mundo de Cristina Flor: pessoas partiram, passaram, e ela mergulhou ainda mais no seu mundo. Na velha casa da rua Santa Cruz só restaram Cristina Flor e Maía da Góia. Então, a já velha Cristina Flor começou a dar suas escapadas: baixotinha, parecia gorducha quando saía encoberta por seus vestidos, todos uns sobre os outros. E vagando pela rua, deu para guardar as frutas desprezadas, principalmente as jogadas na lixeira de uma quitanda vizinha. Até que se adoentou e Maía da Góia a levou para o Dr. Alcides Aldrovandi. Desfolhados os seus vestidos, descobriu-se um novo segredo: amarradas junto ao velho corpo negro e magro de Cristina Flor, dezenas e dezenas de notas de dinheiro, quase todas fora de circulação: anos e anos de salários guardados, sem uso, perdidos para sempre no mundo de Cristina Flor.
Maía da Góia, que agora trabalhava fora, ficou com medo de deixar Cristina Flor sozinha.    Uma moça foi contratada para fazer o serviço de casa e companhia para Cristina Flor, que continuaria tecendo seus tapetes e vestidos.  Mas foi só Maía da Góia chegar mais cedo para ver o quadro: a moça lendo revista deitada no sofá e Cristina Flor faxinando a casa.   E outras moças vieram, quadros parecidos se pintaram e Cristina Flor ficou doente de novo, agora também com diabetes.  Dr. Alcides aconselhou Maía da Góia: “Cristina Flor precisa de olhos dia e noite”.  E para tristeza de Maía da Góia, Cristina Flor foi morar no “Lar dos Velhinhos”.  Mas foi só Maía da Góia visitar Cristina Flor no domingo, para ter uma surpresa.
Cristina Flor estava vistosa e arrumada, fazendo suas costuras e ajudando em pequenas tarefas.    E todo domingo, Maía da Góia levava frutas frescas para Cristina Flor, que sorria do seu mundo, cada vez mais debruçada.
Um dia Cristina Flor tomou um tombo, quebrou o braço e emudeceu: não falava mais, não queixava mais, apenas olhava assustada para aquele mundo de dor que não era mais o seu. Emudeceu com os olhos aflitos.   Maía da Góia foi correndo com a irmã Jandyrinha ver Cristina Flor. Alguém perguntou: “você sabe quem é ela, Cristina Flor?”.   Ela desassustou-se e sorriu: “É a Maía da Góia!”  E desandou a falar de novo.
Além da Maía da Góia, outra paixão de Cristina Flor era o Miro, marido da Jandyrinha.  Miro foi visitar Cristina Flor, que abraçou o Miro.   Uma amiga perguntou: “quem é ele, Cristina Flor?”.  E ela: “o Miro. Meu fio.” “Ué, Cristina Flor, quantos filhos você tem?”.  “Eu? Tenho mir!”.   Mas era graça ou sonho de Cristina Flor, que além do Miro (e de Maía da Góia), filho mesmo só aquele que ela embalava já sem vida desde quando era ainda moça linda.
E de tanto embalar seu menino, Cristina Flor debruçou-se de vez no seu mundo. Na Rua do Porto, quem sabe bem cedo, de mão dada com seu pequeno, vai passeando Cristina Flor nos seus muitos vestidos. Com seu cabelinho curto enfeitado de trancinhas miúdas. 
Com seus pés polvilhados de talco marcando o caminho.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 16 e 30/8/2013



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