(caio silveira
ramos)
E de repente, nem bem fez quatro anos, João Pedro desandou a ler
tudo. Amigo das contas e dos números, ele deve ter começado a somar e a
subtrair letras: e a palavra se fez.
Certo que sua mãe, com o amor transbordante pelos olhos e pelas
mãos, contou ao pequeno que algumas letras, como o “r”, o “l” e o “h", são
mágicas e que às vezes se intrometem entre outras e inventam novos sons.
E que o “x” pode brincar e fazer vários barulhos engraçados. Assim como o
“c”, que se disfarça com o sinal de cedilha para brincar de “s”.
Mas ele descobriu sozinho que o tal “ç” não aparece no começo da palavra e que
o “e” às vezes tem som de “i”, assim como o “o” tem muitas vezes som de “u”:
“todo mundo fala ‘Juão Pedru’, não é?”.
E por que algumas palavras se escrevem de uma maneira e não de
outra? Por que uma se escreve com “j” e “i” e outra com “g” e “i“?
“Porque elas nasceram assim e foram crescendo desse jeito, às vezes mudando um
pouquinho, às vezes não... Quase da mesma forma que hoje você tem os olhos
azuis e seu amigo Marcelo tem os olhos castanhos”, arrisquei para início de
conversa. E ele saiu, por ora, satisfeito.
Sua fascinação por números e palavras o faz encontrar a poesia:
“papai, às seis horas termina a madrugada e começa o dia; depois das seis horas
começa a noite e termina o dia. O seis é um número mágico!”. E enquanto
ele sai correndo para brincar, fico pensando, parado. Mas aí ele já
está de volta e completa: “e de ponta-cabeça ele vira o nove! O nove também é
mágico”.
Lá pelos três anos, as palavras, antes de se fazerem escritas,
já intrigavam o menino. Seus avós maternos, além do forte sangue
italiano, são palmeirenses fanáticos. Não demorou muito para que o pequeno se
encontrasse com algum palavrãozinho suave aqui e ali. Na escola, um
colega também deve ter falado qualquer “coisa” e no mesmo instante a turma toda
parece que começou a repetir a “palavra mágica” em coro risonho e
incontrolável. Aqui ou lá, alguém falou que aquelas eram “palavras
feias”. Dali em diante, se qualquer conhecido ousasse falar um
palavrãozinho inocente por perto, ele desconfiado, ainda que desconhecesse o
significado, emendava em alto e bom som: “palaaaavras”. João Pedro
foi recomendado a não fazer isso com desconhecidos, na escola ou em um campo de
futebol, mas na família, ou entre amigos bem próximos, a história pegou tanto
que se alguém deixa escarpar um palavrão, ou imediatamente se corrige
(“desculpe, eu falei palaaaaaavras”), ou é, entre risos, advertido por outro:
“palaaaaaavras!”. Contei para os colegas do trabalho e
a coisa se espalhou: uma moça confessou que tem falado muito menos palavrão; um
amigo disse que a graça do truco familiar no final de semana foram os parentes
(a cada lance acompanhado de xingamentos) repetindo: “palaaaaaavras!!!”.
Outro dia, enquanto desenhava, João Pedro começou a rir gostosamente.
Sua mãe que trabalhava no computador ao seu lado, perguntou risonha: “que foi,
filho?” E ele, maroto: “acho que sei escrever ‘palavras’...”
“Que ‘palavras’?”, perguntou ela estendendo um velho caderno.
E ele escreveu “buda” em letras grandes e com seu belo sorriso no canto dos
olhos e da boca. “Hum... acho que está faltando alguma coisa aí.” E ele,
mais que depressa, colocou um “n” no meio da palavra. “E
agora?”. E nem bem sua mãe, sorrindo encabulada, disse que estava
certo, ele já marotou-se novamente: “eu acho que sei escrever
outra”. Ela estendeu o caderno e ele sem demora escreveu a outra
“palavra”, com todos os “pês”, “us”, “tês” e “as” a que tinha direito.
Por vezes, ele fica sério quando ouve da televisão algo como
“disputa” e pergunta se aquilo é uma “palavra feia”. Digo a
ele que não. E vou além: conto que aquelas outras “palavras”, chamadas de
“palavrões”, na verdade também não são propriamente feias.
Relembro lá comigo a lição que Sancho Pança aprendeu com o escudeiro do
Cavaleiro do Bosque, em “O engenhoso Cavaleiro D. Quixote de La Mancha” (1615),
de Miguel de Cervantes: tem gente que usa “palavrões” inclusive como
elogio. Mas para o João, falo apenas que o que torna uma palavra feia ou
bonita, acima de tudo, é o sentido que damos a ela, dependendo da situação e da
forma como a usamos. “Palavras feias são aquelas que machucam alguém”,
tento explicar ou me convencer.
“Então eu posso dizer ‘palavras’?”, ele me perguntou.
Com receio de algum problema na escola, aconselhei: “Melhor não,
alguém pode se magoar. E depois existem tantas outras palavras para
dizer...”
“E pensar ‘palavras’, pode?” “Pode”, sorri, “por quê? você pensa
muito em ‘palavras’?” E João, sorrindo: “todo os dias...”
E então saiu correndo pela sala, com as palavras saltando ao seu
redor, numa lindeza sem fim.
ustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 28/6/2013
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