terça-feira, 7 de outubro de 2014

Palavras

(caio silveira ramos)

E de repente, nem bem fez quatro anos, João Pedro desandou a ler tudo. Amigo das contas e dos números, ele deve ter começado a somar e a subtrair letras: e a palavra se fez.
Certo que sua mãe, com o amor transbordante pelos olhos e pelas mãos, contou ao pequeno que algumas letras, como o “r”, o “l” e o “h", são mágicas e que às vezes se intrometem entre outras e inventam novos sons.  E que o “x” pode brincar e fazer vários barulhos engraçados.  Assim como o “c”, que se disfarça com o sinal de cedilha para brincar de “s”.   Mas ele descobriu sozinho que o tal “ç” não aparece no começo da palavra e que o “e” às vezes tem som de “i”, assim como o “o” tem muitas vezes som de “u”: “todo mundo fala ‘Juão Pedru’, não é?”.
E por que algumas palavras se escrevem de uma maneira e não de outra?  Por que uma se escreve com “j” e “i” e outra com “g” e “i“?  “Porque elas nasceram assim e foram crescendo desse jeito, às vezes mudando um pouquinho, às vezes não... Quase da mesma forma que hoje você tem os olhos azuis e seu amigo Marcelo tem os olhos castanhos”, arrisquei para início de conversa.   E ele saiu, por ora, satisfeito.
Sua fascinação por números e palavras o faz encontrar a poesia: “papai, às seis horas termina a madrugada e começa o dia; depois das seis horas começa a noite e termina o dia. O seis é um número mágico!”.  E enquanto ele sai correndo para brincar, fico pensando, parado.   Mas aí ele já está de volta e completa: “e de ponta-cabeça ele vira o nove! O nove também é mágico”.
Lá pelos três anos, as palavras, antes de se fazerem escritas, já intrigavam o menino.  Seus avós maternos, além do forte sangue italiano, são palmeirenses fanáticos. Não demorou muito para que o pequeno se encontrasse com algum palavrãozinho suave aqui e ali.   Na escola, um colega também deve ter falado qualquer “coisa” e no mesmo instante a turma toda parece que começou a repetir a “palavra mágica” em coro risonho e incontrolável.   Aqui ou lá, alguém falou que aquelas eram “palavras feias”.   Dali em diante, se qualquer conhecido ousasse falar um palavrãozinho inocente por perto, ele desconfiado, ainda que desconhecesse o significado, emendava em alto e bom som: “palaaaavras”.   João Pedro foi recomendado a não fazer isso com desconhecidos, na escola ou em um campo de futebol, mas na família, ou entre amigos bem próximos, a história pegou tanto que se alguém deixa escarpar um palavrão, ou imediatamente se corrige (“desculpe, eu falei palaaaaaavras”), ou é, entre risos, advertido por outro: “palaaaaaavras!”.     Contei para os colegas do trabalho e a coisa se espalhou: uma moça confessou que tem falado muito menos palavrão; um amigo disse que a graça do truco familiar no final de semana foram os parentes (a cada lance acompanhado de xingamentos) repetindo: “palaaaaaavras!!!”.
Outro dia, enquanto desenhava, João Pedro começou a rir gostosamente.   Sua mãe que trabalhava no computador ao seu lado, perguntou risonha: “que foi, filho?”  E ele, maroto: “acho que sei escrever ‘palavras’...”   “Que ‘palavras’?”, perguntou ela estendendo um velho caderno.    E ele escreveu “buda” em letras grandes e com seu belo sorriso no canto dos olhos e da boca.  “Hum... acho que está faltando alguma coisa aí.” E ele, mais que depressa, colocou um “n” no meio da palavra.  “E agora?”.   E nem bem sua mãe, sorrindo encabulada, disse que estava certo, ele já marotou-se novamente: “eu acho que sei escrever outra”.   Ela estendeu o caderno e ele sem demora escreveu a outra “palavra”, com todos os “pês”, “us”, “tês” e “as” a que tinha direito.
Por vezes, ele fica sério quando ouve da televisão algo como “disputa” e pergunta se aquilo é uma “palavra feia”.    Digo a ele que não. E vou além: conto que aquelas outras “palavras”, chamadas de “palavrões”, na verdade também não são propriamente feias.    Relembro lá comigo a lição que Sancho Pança aprendeu com o escudeiro do Cavaleiro do Bosque, em “O engenhoso Cavaleiro D. Quixote de La Mancha” (1615), de Miguel de Cervantes: tem gente que usa “palavrões” inclusive como elogio.  Mas para o João, falo apenas que o que torna uma palavra feia ou bonita, acima de tudo, é o sentido que damos a ela, dependendo da situação e da forma como a usamos.  “Palavras feias são aquelas que machucam alguém”, tento explicar ou me convencer.
“Então eu posso dizer ‘palavras’?”, ele me perguntou. 
Com receio de algum problema na escola, aconselhei: “Melhor não, alguém pode se magoar. E depois existem tantas outras palavras para dizer...” 
“E pensar ‘palavras’, pode?” “Pode”, sorri, “por quê? você pensa muito em ‘palavras’?”  E João, sorrindo: “todo os dias...”
E então saiu correndo pela sala, com as palavras saltando ao seu redor, numa lindeza sem fim.

ustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 28/6/2013

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