(caio silveira
ramos)
Todo dia ele
fazia tudo sempre igual.
Pouco antes das
cinco da manhã, meu pai se levantava da cama.
Na cozinha, colocava numa das asas do fogão antigo, as duas ex-latas de
bolacha: a maior, com açúcar cristal; a outra, com o pó de café. Encaixava no velho tripé de ferro o coador
de pano e logo abaixo o bule de metal sem a tampa. E enquanto deixava a água em fogo baixo para
ferver na “caneca” (era esse o nome que ele dava para a panelinha certa, que tinha até a marca da medida
correta), meu pai ia para a sala fazer a ginástica aprendida nos tempos do Seminário
de Pirapora. Nada muito puxado, só
movimentos básicos para começar bem o dia.
De volta à cozinha, com a água já fervendo, escaldava o coador, jogava
fora a água do bule e media com uma colher (pouco maior e mais pontuda que as
de sopa) o nível da água que tinha ficado na “caneca”. Tudo nos seus conformes, colocava as
colheres “certas” de açúcar e de café, mexia aquele caldo grosso e escuro e o
despejava cuidadosamente no coador, só parando para dar umas mexidinhas na
“caneca” pra que a mistura saísse uniforme.
Enquanto o café ainda caía no bule, despejava com muito jeito um tanto
na sua xicrinha de ágata e tomava de olhos fechados. Depois colocava mais um tanto numa outra
xícara (de louça ou também de ágata, só que maior que a sua) e levava para
minha mãe acordar seu dia.
E ela despertava
com o aroma, o gosto e o cuidado. Ou já estava desperta, protegendo a família e
o mundo com suas orações. E enquanto
meu pai arrumava a mesa (ou fazia a barba e se preparava para o banho), ela
colocava o leite para ferver e ia me chamar, já com meu uniforme passado,
cheirando a novo.
E era um chamado
doce, de proteger meus sonhos guardados: “filho, cobre os olhos”. E era só eu me cobrir para ela acender a luz,
já me oferecendo desculpas: “precisa ir hoje mesmo? Está chovendo lá
fora”. Ternura marota: talvez ela já
soubesse que assim eu jamais conseguiria me negar a começar o dia.
Eu enrolava um
tanto, imaginava o tempo lá fora e a manhã que me aguardava. Vestia o uniforme
e cambaleando abraçava e beijava minha mãe, que naquele instante pendurava numa
cadeira colocada em frente à porta do banheiro a roupa do meu pai passada há pouco.
Não que precisasse ou ele pedisse: a roupa já saia perfeita do guarda-roupa.
Mas o guarda-pó branco e comprido, e a camisa cheirosa passados de manhã eram
apenas mais uma das muitas ternuras daquela mulher: era como se naquele momento
ela acarinhasse e protegesse meu pai pelo dia todo.
De banho tomado,
com o cabelo ondulado ainda molhado e penteado para trás, vestindo só a calça e
os chinelos, meu pai abria a porta do banheiro para apanhar a camisa. Então, eu
o abraçava. E naquele abraço eu
repousava mais um pouco: o cheiro do café espalhado pela casa, o cheiro da
roupa passada, o cheiro do perfume do meu pai me embalavam e me abrigavam dos
males da vida.
Eu lavava o
rosto, tentava domar meu cabelo com a velha escova do meu pai e me sentava à
mesa do café. E enquanto mergulhava o
pãozinho sem miolo que ele ou minha mãe tinham acabado de trazer da padaria,
meu pai, carinhoso-zombeteiro, se ria do meu jeito de soprar a quentura do
leite com café, me chamando de “bico fino”.
Mas lá vinha minha mãe de novo, colocando a minha caneca numa panelinha
com água fria. Ou ele mesmo amornava tudo, passando o café com leite de uma
xícara para outra. E eu tomava aquele
leite espumoso sob os olhos risonhos do meu pai. E meu dia, enfim, acordava.
*
Há quem diga que
nenhum amor sobrevive à rotina.
Talvez.
Ou talvez só na
rotina o amor se revele inteiro.
E para sempre.
Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 5/9/2014
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